Cronópios Editora

Um espaço de discussão e aprendizado para professores de Língua Portuguesa.

6.4.08

Um leitura dos vazios de sentidos...

Eliane Aguiar

Enquanto sujeitos constituídos na linguagem, somos todos filhos do vazio. Mais que isso: filhos, irmãos, amantes do vazio que nos separa daquilo que o outro e o grande Outro nos pensa de nós. Há, no processo de interação dos sujeitos, sempre um rasgo que faz vislumbrar algo do real de cada um. É como se nas entrelinhas dos dizeres e dos silêncios, deixássemos entrever, sem mesmo o saber, uma intencionalidade que fala de coisas que não podem ser realmente nomeadas, mas são sabidas por nós, sujeitos, e pelo outro, o nosso leitor.

Também no texto, na palavra que vai tomando forma no texto, há sempre uma infinidade de vazios que estão ali justamente para dar o sentido, a forma, a lógica (nem sempre lógica) àquilo que precisamos desvendar em cada leitura, em cada espiadela pelo vão do não dito. A diferença é que, como diz Iser, não há o face a face em que se originam todas as formas de interação social. O leitor da palavra escrita não apanha no gesto seu autor. A interação, desse modo, dá-se no enfrentamento dessa palavra dura e restrita a si mesma, mas sempre acompanhada da possibilidade de ser preenchida nos espaços desabitados que vão se formando diante do olhar do outro, seu leitor.

É dessa palavra que os vazios deixam vazar, atravessados pela mancha que o outro-leitor lhes deposita, novas possibilidades, novos desejos. Na contingência do nonada, condição determinante para a inter-re-lação humana, são estabelecidas as relações de interação. E, projetivamente, o preenchimento dos vazios.

Isso porque o texto, objeto sempre em construção, espera ser atualizado pelo leitor, em suas várias escrituras dialogadas entre si. Nas lacunas, vazios, indeterminações, perdem em parte suas referências de contexto original para ceder lugar a outros contextos, atualizados pelo leitor, o qual faz as conexões a partir de seu repertório de leitura, de mundo, de vida, de experiências e de seus próprios vazios.

Assim como na relação direta sujeito-outro, também na relação texto-leitor, há, no preenchimento desses vazios, projeções daquilo que, enquanto leitores, desejamos que estejam presentes nos textos. É sempre, em última instância, o desejo que nos leva ao gozo da leitura ou ao seu sintoma criativo. Em outras palavras, o desejo carregado de vazios e significações por vezes indizíveis possibilita algum tipo de comunicação e interação entre o texto e seu leitor: o desejo de quem escreve e o de quem lê.

A instância do gozo determina o prazer fugaz e mortal do texto. Na ânsia de ver todos as lacunas preenchidas de sentido, geralmente o próprio, o leitor perde o texto, perde o desejo do autor nomeado na entrelinhas, perde-se enquanto sujeito. Projeta no texto o que exclusivamente é seu e acredita, mesmo que não tenha consciência disso, estar vendo no texto suas crenças e seus sentidos. Nesse caso, como o próprio Iser menciona, a interação fracassa, porque o leitor impõe ao texto algo que não pertence ao seu universo de significações ou às suas possibilidades de preenchimento.

Isso significa que, embora o texto apresente o espaço que é próprio do leitor, deixando que se instale nos recantos vazios de suas palavras, há uma regulamentação interna que pede o mínimo de coerência e lógica, mesmo que sejam elas invisíveis a olho nu. É como se, intrínseco às palavras que podem ser vistas, existisse um universo de pensamentos que flutuam entre os vazios, prontos para serem pescados pelo leitor. Não se pode simplesmente preencher esses vazios com qualquer coisa, com qualquer referência pessoal, sem que esse preenchimento seja regulado pelo invisível do texto.

O sintoma criativo da leitura, por sua vez, pode ser entendido pela própria interação estabelecida entre texto e leitor, cujos vazios são mediados pelo encontro de desejos: do autor e do leitor, ampliando o horizonte da leitura para um novo universo, que não é a realidade do autor nem, tampouco, a do leitor. Mas uma outra realidade que se pode construir na palavra escrita e que se faz presente no momento em que o leitor, vislumbrando nos rasgos do texto lapsos de sentido indizível, consegue produzir sentido, criando uma nova conectabilidade para além do que o texto concreto é capaz de exprimir.

Em última palavra, os vazios do texto, como os vazios da vida, são as faltas preenchidas pelo desejo. Mais que isso, são a possibilidade dos desejos aflorarem a fim de continuar produzindo sentido àquilo que, diante do olhar desatento e do gozo fácil, permanece calado, quieto, em silêncio.

Comentário baseado no texto: ISER, Wolfgang. “ A interação do texto com o leitor”. In: LIMA, Luiz C. (org.) A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

29.3.08

A poética de Alberto Caeiro

Alberto Caeiro é considerado um “mestre” pelos outros heterônimos. Álvaro de Campos diz: “o meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo”. Já Ricardo Reis, mais contido, afirma: “é notável que toda obra de fôlego, pela qual um indivíduo se institui mestre na sua categoria, é, ao mesmo tempo, obra de emoção e de pensamento”. Finalmente o ortônimo, ao analisar a carta astrológica de Caeiro, compara-o ao elemento fogo, chamando-lhe libertador: “operando sobre mim mesmo, me livrou de sombras e farrapos, me deu mais inspiração à inspiração e mais alma à alma.”
Nosso objetivo, neste breve percurso, é refletir sobre essa aura de mestre atribuída a Caeiro. Como se constrói? O que significa exatamente?
Principiemos tomando mais uma citação de Álvaro de Campos, em que narra partes de um diálogo estabelecido com o mestre: “ ‘Olhe, Caeiro... considere os números... Onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número – 34, por exemplo. Para além dele temos 35, 36, 37, 38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja número maior ...’. ‘Mas isso são só números’, protestou o meu mestre Caeiro. e depois acrescentou, olhando-me com uma formidável infância: ‘O que é o 34 na realidade? '."
A resposta de Caeiro impressiona Campos. Ao invés de concordar com o último em seu raciocínio lógico cartesiano, vai direto à fonte e pergunta o que os números são. Ou seja: não rebate um conhecimento com uma outro, apenas limita-se a dizer que essa é uma maneira de ver a realidade, uma maneira construída, pois “o que é o 34 na realidade? “. Sob a lógica, com certeza, há uma forma de representação, uma forma humana de recobrir.

“XLVI
(...)
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a natureza produziu."

No fragmento de poema acima, Caeiro afirma sua intenção de despir-se do olhar cultural, do peso imenso do saber que a civilização coloca sobre a natureza, o mundo, a existência em si de todas as coisas e todos os seres.
Sentir, portanto, não é entendido aqui como “expressão sentimental”. É o sentir ligado aos sentidos, ao olhar, predominantemente. Como se, de alguma forma, fosse possível resgatar um olhar humano original, primitivo. O paganismo, sim, pois não é ser pagão como oposição ao cristão: é o momento do nascedouro do homem apenas enquanto ser vivo de uma espécie.
Pensar, também, tem em sua obra sentido muito próprio. É visto como sinônimo de cultura, de encaixotar os sentidos, nunca como procedimento natural. Se analisarmos a construção de alguns de seus poemas, podemos acompanhar uma voz poética que olha o mundo e nega o pensamento. Nesse sentido, seu caráter filosófico é a negação absoluta da filosofia, seja ela científica ou religiosa.
No entanto...
“ Por mim, escrevo a prosa dos meus versos e fico contente (...)”
Mesmo afirmando-se primitivo e simples, Alberto Caeiro, como os demais heterônimos, não deixa de ser homem moderno. Assim sendo, revela suas próprias incoerências e relatividades. Poderia, romanticamente, mascará-las e “fazer de conta” que não existem. Mas não. Afirma a escrita e a produção de versos. Ou seja, nega a representação por meio da própria representação. Homem moderno, consciente, técnico. O poeta é um fingidor e assume seu fingimento dentro dos próprios textos.
Segundo o crítico Massaud Moisés, “(...) entre ele e a Natureza, ou entre e ele e sua naturalidade, se interpõe o véu da palavra e, por conseqüência, do pensamento. É pensando que visa a ser natural, ou seja, despojado de pensamento, reduzido à pura existência. É por meio da intelectualização que persegue a simplicidade das coisas naturais – flores, regatos, árvores etc."
Intelectualização dissimulada em aparente simplicidade:

“Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
(...)”

Em apenas dois versos, podemos pensar em pelo menos três representações sobrepostas: sonho de meio dia será visão? pesadelo? (1) A afirmação do sonho (2) e da fotografia (3) dentro do sonho. Ou seja: todo o despir que virá depois assume-se como forma de representação, triplamente constituída. Será uma representação, dentro de outra e de outra. Pura teoria da relatividade...
Tão fingindo quanto os outros? Quem sabe mais do que os outros. Pois simula não pensar, simula ser, simula sentir, simula entrar em reconciliação com o mundo do corpo, das sensações, mesmo que ficcionalmente. Segundo Leyla Perrone-Moysés, “Em Alberto Caeiro, o sujeito pretende fundir-se ao objeto no simples existir. Caeiro é a trégua nessa luta. O Eu deixa de perguntar-se “quem sou” para afirmar apenas “sou”. Em vez de ser olhado, por outro ou por si mesmo, Caeiro olha para fora. Caeiro não pensa, existe; não é uma mente que especula, é um corpo que sabe. É claro que tudo isso é o que Caeiro diz ser, deseja ser, finge ser, aplica-se a ser com relativo êxito. Porque Caeiro também é uma ficção, a ficção da reconciliação."
Talvez por isso mestre. Mestre dos mestres.

Débora de Angelo

Bibliografia:
MOISÉS, Massaud. O guardador de rebanhos e outros poemas (Cultrix)
MOISÉS, Leyla Perrone. Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro (Cia das Letras)
PESSOA, Fernando. Obra em prosa e Obra poética (Aguilar)

17.3.08

Um ensino que permite a existência de sujeitos



Eliane Aguiar


O ensino da língua portuguesa, a partir da concepção de letramento, organiza-se por duas vias inseparáveis: é objeto de conhecimento e meio para o conhecimento. Ou seja, na mesma medida em que se apresenta como matéria a ser dissecada, proporciona ao sujeito a construção e compreensão de conhecimentos do mundo. E, portanto, não pode ser pensado de modo fragmentado, como mera decodificação de conteúdos e reprodução de idéias, desconsiderando a vida real de seus falantes, desvalorizando seus conhecimentos prévios e a legitimidade de seu saber; descontextualizando o ensino no exercício mecânico e repetitivo; desvirtualizando a gramática ao valorizar regras específicas de uma variedade em detrimento das muitas outras existentes.
Uma vez que a língua só se faz existir no movimento real do processo enunciativo, quando cada ato da linguagem produz sentido, é preciso levar em conta que as práticas de linguagem são uma totalidade e, portanto, não podem, na escola, ser apresentadas de maneira fragmentada, sob pena de não se tornarem reconhecíveis e de terem sua aprendizagem inviabilizada. Ainda que didaticamente seja necessário realizar recortes e descolamentos para melhor compreender o funcionamento da linguagem, é fato que a observação e análise de um aspecto demandam o exercício constante de articulação com os demais aspectos envolvidos no processo (PCN- terceiro e quarto ciclos). Esta concepção da linguagem baseia-se no fato de que, ao mesmo tempo em que a língua permite a comunicação entre os indivíduos, permite também a constituição da personalidade e da própria existência dos sujeitos.
Desse modo, a velha idéia de que a função da escola é garantir ao aluno um repertório de estruturas utilizadas em determinadas situações sociais não dá conta de instrumentalizá-lo para a comunicação eficiente. Faz-se necessário pensar no que significa auxiliar o aluno a construir a sua autonomia no uso da linguagem, o que implica alterar os conteúdos selecionados e priorizados no trabalho escolar, bem como o encaminhamento e o enfoque didático adotados. Os estudos acerca do letramento, nesse contexto, pressupõem inevitavelmente um outro paradigma metodológico, subvertendo a visão estática do ensino de língua. As ações educativas, na escola, passam a ser mediadoras diretas entre o estudante, os conteúdos escolares, a sociedade e a cultura.
Sob esse prisma, o ensino da língua materna passa a ser compreendido como mais um tipo de prática social do letramento, cuja premissa é levar o estudante a descobrir-se como sujeito de um determinado espaço, tempo e cultura, permitindo que ele pense, reflita e confronte sua fala e escrita, nas mais variadas situações e contextos. É necessário, portanto, pensar esse ensino como uma construção dos conhecimentos com os quais o sujeito faz funcionar as práticas da linguagem, reconhecendo os seus mais variados usos orais e escritos e refletindo sobre o modo como a língua se organiza e se realiza nessas práticas. Se por um lado, o sujeito fala, escuta, lê e escreve, compondo-se como um sujeito constituído por esse uso, de outro, aprende a pensar sobre sua ação, elaborando um conhecimento sobre a língua e suas estruturas de funcionamento.
O estudo dessa articulação, correspondendo às práticas de escuta, leitura, produção de textos (uso da língua) e de análise lingüística (reflexão da língua), permite a ampliação da competência lingüística dos sujeitos e, como conseqüência direta, abre as portas da linguagem para a construção de um conhecimento reflexivo de algo que, como falante de sua língua, já conhece intuitivamente. O foco do letramento, desse modo, recai sobre um ensino de língua integrado a diferentes áreas do saber, obrigando o educador a repensar o seu espaço pedagógico. E, portanto, a pensar uma escolarização a partir da qual o sujeito aprenda a simbolizar as experiências (suas e dos outros) via palavra (oral e escrita), refletindo sobre elas mediante o estudo da língua, instrumento que lhe permite organizar a realidade na qual se insere, construindo significados, nomeando conhecimentos e experiências, produzindo sentidos, tornando-se sujeito.

9.3.08

De desejos e palavras...



Eliane Aguiar

Em uma realidade escolar na qual a língua escrita não se mostra como um lugar por onde a singularidade dos sujeitos possa vazar, cerceada por professores de desejos secos, fazedores quando muito de escritas e leituras que se arrastam por falta de eco, a experiência educativa não se deixa encontrar.

Inevitável perguntar: onde foram parar os desejos desses professores? Onde foi parar o sentido da escola? Em que lugar se enterrou vivo o sonho de transformar o mundo em um lugar melhor, com valores morais e éticos, os quais, entre outros valores, deveriam guiar os sujeitos ao encontro de infinitas experiências do viver?

Diante de tantas e tão grandes pedras no meio do caminho, o que fazer para tornar o ensino da língua escrita uma experiência e, conseqüentemente, um desafio constante para professores e alunos? Independentemente do rumo a tomar, das soluções mediadoras, é preciso reverter a ordem calcificada das práticas escolares, descolando-se de um imaginário que sufoca qualquer possibilidade de criação. É preciso ressuscitar os mortos vivos desse lugar escuro que é, hoje, a escola brasileira (são raríssimas as escolas que se fazem exceção) para fazer nascer daí qualquer coisa de belo como construção legitima do ser. É preciso fazer nascer desejo.

No que diz respeito ao ensino da língua escrita, o fazer nascer desejo tem de estar atrelado ao próprio sentido que o toque da língua propicia ao corpo do educador. Como a experiência é, mais do que a conjunção de fatos em si, a marca invisível das letras que fazem de cada sujeito um ser singular, é preciso que o educador redescubra essa marca em seu próprio corpo para descobrir de que matéria e de que palavras é feito. Para somente então se fazer valer dessa matéria e de sua relação vital com a palavra na sua prática como educador. Longe de perceber a língua e a prática educativa como uma técnica mecânica e linear, o educador tem de necessariamente ver-se na experiência da língua desafiado e desafiante.

Nesse contexto, pensar a formação de leitores e escritores é integrar o ensino da língua escrita a um projeto educativo maior, cuja premissa amplia a integração do sujeito ao mundo letrado, como uma atividade intelectual dinâmica em essência, que pressupõe a capacidade de construir sentidos aos variados gêneros textuais, dentro e fora do ambiente escolar. Desse modo, o estudante deve ser colocado diante de um universo amplo de gêneros textuais escritos que, inseridos na cultura, apresentam graus de complexidade diferentes e se valem de uma função social específica, propiciando-lhe um conhecimento de suas estruturas, características, linguagens, intenções etc. Para cada gênero, a leitura e a escrita precisam ser processadas a partir de especificidades próprias do texto e de seu lugar na cultura e na sociedade.

No que diz respeito, especificamente, à leitura de gêneros literários, é preciso garantir uma formação do estudante enquanto sujeito e enquanto leitor, capaz de apreender pela literatura as várias formas de representação do real. Dessa perspectiva, a literatura, por ser uma forma de representação do mundo e dos homens predominantemente criativa e com intenção estética, cuja linguagem ultrapassa o valor apenas comunicacional para chegar ao efeito da linguagem como manifestação cultural, é também uma das fontes mais profundas de construção e apreensão de conhecimento.

O ensino da língua escrita tem, pois, a tarefa de formar sujeitos leitores e escritores, possibilitando-lhes a construção de um olhar crítico e competente sobre a própria literatura como instituição social, sobre a linguagem verbal capaz de construir significados para as coisas do mundo, sobre o próprio mundo e suas ideologias e discursos, sobre o homem que habita esse mundo e sobre o próprio leitor e escritor diante do inusitado do texto. E pressupõe, enquanto tal, um trabalho regular de leitura, seja por fruição seja a partir de critérios de análise e reflexão diversos.

É preciso, para isso, que o educador (eu, você, o outro), lance mão de um diálogo entre o hoje e o ontem, estabelecendo sentido entre a escola e o mundo. Quer dizer, ao invés de “ensinar” uma língua cindida, desumanizada em sua essência pela palavra que não diz, tem a obrigação ética e moral de construir com o aluno uma compreensão da língua, no tempo e espaço, que possa dimensionar as invenções da linguagem (literária ou não) e suas mensagens, em cada momento da história humana, ampliando o olhar do estudante sobre as representações das experiências singulares do homem.

3.3.08

O DESAFIO PESSOANO: FRAGMENTOS PRELIMINARES


Publicaremos uma seqüência de brevíssimos ensaios (talvez a palavra mais apropriada seja “comentários”) sobre o processo pessoano denominado heteronimia. Longe de serem análises formais, podem ser compreendidos como “espaço de leitor” ou “olhar revisitado” da obra do poeta, pelo prisma de alguém que volta a seus textos, na maturidade leitora.

Desafio... Iniciamos esta conversa com pelo menos duas possibilidades interpretativas: desafio para Pessoa ou de Pessoa para o leitor?
Somando-se algumas leituras de parte de sua obra e de alguns comentadores, já um descarte faz-se necessário: para Fernando Pessoa não há desafio, pois não há projeto. Os heterônimos não são projetados pelo ortônimo, o chamado “Fernando Pessoa, ele mesmo”. Leyla Perrone-Moisés afirma, categórica: “é preciso dizer, de uma vez por todas, que Fernando Pessoa “ele mesmo” não existiu. Que o lugar designado por esse nome é um lugar desertado, que esse nome flutua na inter-dicção e margeia o discurso por ele assinado. É preciso render-se à evidência de sua perfeita invisibilidade, devido à sua perfeita divisibilidade. É preciso confessar que Pessoa é um poeta fictício, tão irreal quanto os heterônimos que inventou.”
Criação, todos. Caeiro, Campos, Reis e Pessoa. Um não precede os outros, apesar de um Fernando Antônio Nogueira Pessoa ter nascido em 13 de junho de 1888 e morrido em 30 de novembro de 1935. Em famosa carta a Adolfo Casais Monteiro, o poeta nos narra parte do fenômeno heteronímico: “Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida na maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou ou a quem suponho que sou. Dizia-o imediatamente, espontaneamente, como sendo de um certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho saudades deles.”
Sensata, a analista. Se não saem da imaginação, não foram projetados, arquitetados a priori. Discursivamente constituídos, em sentidos muito posteriores à existência do poeta, em seu nascedouro foram, antes de tudo, linguagem em movimento, fragmentos lingüísticos do real, representações simbólicas do mundo. Sua vida, propriamente, pois “ouve, sente e vê” as figuras que sabe serem apenas formas de representação.
As afirmações do poeta nos impedem algumas interpretações apressadas. Não se trataria de dupla personalidade? Provavelmente, não. Em estado de dupla (ou múltipla) personalidade, um ser não tem consciência do outro. No caso de Pessoa, todos têm consciência de todos, todos falam de todos (vide sua obra em prosa). Ao falar do surgimento dos heterônimos, Fernando Pessoa usa expressões como “nasceu em mim”, “me vi falando”, “foi o aparecimento de alguém em mim” etc. Desafio para nós: não há projeto, mas há consciência.
Quem sabe loucura de uma vida insana? Jacinto do Prado Coelho sintetiza: “Seus poemas são o que houve nele de vida. Em tudo mais não houve incidentes, nem há história.” Não há nada de fascinante na biografia de Fernando Pessoa. Família grande, irmãos, perda do pai, figura de um padrasto, juventude vivida na África do Sul (o que lhe dá uma forte formação em língua e literatura inglesas), maturidade em Portugal, muito álcool, várias publicações em revistas de vanguarda, vida profissional ligada ao jornalismo e à tradução, vida amorosa quase inexistente e escrita. Muita, muita, muita escrita: “Sua imensa produção escrita (a inesgotável arca, em contraste com sua pequena ambição de publicar) atesta um trabalho incessante e quase insano.”
Deixando de lado as patologias (talvez alguns traços de histeria, esquizofrenia, neurastenia, enfim...), talvez possamos pensar em um traço não de personalidade, mas de modernidade: Fernando Pessoa é um autor consciente de que o “eu” (e o “outro”) é um fingimento psíquico que se dá pela e na linguagem. Ainda segundo Leyla Perrone- Moisés, “os heterônimos não são fruto de uma rica imaginação tão-somente artística, ou a prova da versatilidade do Poeta, mas os cobrimentos de uma falha. Falta de ser e excesso de desejo (grifo meu) fazem implodir o sujeito que, ao tentar reunir diversos eus postiços num conjunto, precipita-se, pelo contrário, na experiência da dispersão sem volta. Pessoa não se multiplica para fora, mas para dentro(...).” E, segundo a autora, nesse caminho obsessivo, que muda de formas mas está sempre no mesmo lugar, a grande questão é “quem sou? E a resposta: Não sou nada.”
Eco dos primeiros modernos (Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e tantos outros), a obra pessoana, dentro de uma ótica capitalista, insere-se da “falta de utilidade”, decorativa ou sob “forma de lição”, o que faz do poeta “um ser desqualificado” socialmente. “Podemos ver em Pessoa um momento muito significativo, estética e socialmente, de uma linha que vem desde o Romantismo, e ao longo da qual o poeta se sente (se coloca) primeiro como Gênio, em seguida como maldito, depois como resistente heróico, e finalmente como desqualificado. Poeta maior do início de nosso século, Pessoa se auto-situa, em sua existência social, em seus poemas e páginas íntimas, como um gênio desqualificado.”
Eis nosso grande desafio: ver-se diante de obra tão multifacetada que, no entanto, não sai do lugar. Não seria essa também nossa condição de vida no mundo moderno? Desejamos muito, vivemos pouco; vemos muito, não entendemos quase nada. Mas talvez nós, assim como ele, pulsemos ainda por alguma energia, cada qual canalizando-a à sua maneira: “tematicamente, a poesia de Pessoa nega: nega a verdade, a unidade, a finalidade, a própria energia como esforço inútil. Mas em sua escrita teimosa, ela afirma um tipo de ação, a poesia, num mundo que não lhe quer dar mais nenhum lugar. É escrevendo que Pessoa qualifica o desqualificado: ‘Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei / A caligrafia rápida destes versos, / Pórtico partido para o Impossível’.”

Débora de Angelo

25.2.08

Auto-avaliação- parte 3

[Parte final do texto Auto-avaliação]

De lá para cá, o questionamento: por que o espaço para pensar em voz alta se faz necessário?...
Feita a retrospectiva, é preciso dizer que essas situações foram fundantes em mim para que eu aprendesse a “agir na urgência, decidindo na incerteza”, como diz Perrenoud sobre a questão do ensinar. Na urgência, quase que no susto de não saber o que fazer diante do que sempre aparecia de novo, de “ambíguo e confuso”.
Desse modo, responder a questão “como formadores, em que medida compreender que é necessário descontruir o problema manifestado para construir o problema existente nos ajuda a entender o mecanismo de aprendizagem das professoras com as quais trabalhamos?”, exige realmente um refazer de percurso para identificar no próprio sujeito formador a ‘sua crise de confiança’, num exercício contínuo e infinito de reflexão sobre aquilo que se revela como um problema que pode estar escamoteando o que de fato é imperativo deixar-se revelar. Nesse sentido, a falta de tempo do professor para estudar, refletir, avaliar sua prática e a nossa própria falta de tempo, como formadores, para trabalhar os textos, as estratégias, em prol de objetivos bem traçados, passam a ser um problema para responder à angústia que a prática formativa, necessariamente, gera.
Em um caso e em outro, os sintomas se revelam na reclamação e nas justificativas que tamponam o que é da ordem do medo, da insegurança, da rejeição ao novo e desconhecido, dificultando um enfrentamento reflexivo tanto do professor quanto do formador. A angústia de um, nesse contexto, se reflete na angústia do outro naquilo que se faz claramente projetivo e transferencial. Tanto que nos pegamos (eu me pego fazendo isso muitos vezes) justificando do mesmo modo a nossa ação (ou não ação) na ação (ou não ação) do outro. Daí a necessidade de parar e olhar para o próprio 'umbigo' a fim de resgatar nesse olhar um novo modo de enxergar o que está para além dele.
O “espaço para pensar em voz alta”, nesse contexto, tem sido permitido nos nossos próprios encontros de preparação das supervisões. Seja em forma de uma auto-avaliação como esta ou nas várias discussões que vamos fomentando a cada novo encontro, vamos elaborando um pouco nossas angústias, anseios, dúvidas, reconhecendo nas trocas um lugar de construção de conhecimento. Termos lido o texto da Alarcão, abrindo para a reflexão do que foi até agora a formação deste semestre, ajudou-me a elaborar o desconforto e perceber que é preciso reformular o modo como eu fui me engessando a mim mesma (e, certamente, às professoras) na medida em que via a urgência de conduzir o projeto (tema da formação) como prioridade absoluta nesse processo de formação.
Essa parada estratégica permitiu-me reformular o processo de formação até este momento, mas foi um pouco mais além, pois me também permitiu deixar evidenciada a importância da escuta na relação entre formador e professores. Ao frisar, na minha escuta de meu próprio processo enquanto formadora, o respeito pela angústia, anseios e dúvidas como manifestação legítima de qualquer processo de ensino e aprendizagem, foi possível desvelar justamente aquilo que também deve estar no espaço escolar, na relação do professor com as crianças. Como numa cadeia alimentar, ao serem tocados e escutados ali, os professores certamente tocarão acolá, nas crianças, no projeto, no desejo de fazer...
Justamente por isso, acho que não posso terminar este texto sem dizer que a “necessária passagem do saber para o saber-fazer” passa também, se não principalmente, pelo experenciar-se, que não é só um simples experimentar aquilo que ele vai recebendo a cada novo encontro de supervisão. Mas um deixar-se tocar por aquilo que ele recebe quando, numa construção quase que artesanal, ele mesmo vai se possibilitando fazer. Isso significa dizer que, na medida em que nossas propostas apontam para a leitura e escrita como grandes objetivos do processo de ensino e aprendizagem, é essencial que o formador e o professor sejam eles mesmos alguém que experencia a leitura e a escrita como caminhos de transformação, antes de mais nada, pessoal. Daí, então, tocados pela experiência da palavra, sintam-se de fato plenos do toque que ajuda na transformação do outro.
Eliane Aguiar

20.2.08

Auto-avaliação - parte 2

[Continuação do texto "Auto-avaliação" - parte 2]

Mas, afinal, o que eu fazia?
Primeiro: eu dizia para os professores fazerem coisas que eu mesma jamais havia feito em sala de aula (as minhas experiências como professora esbarraram, inicialmente, numa concepção tradicional de ensino por conta das instituições por onde passei e pela minha própria formação acadêmica), porque eu tinha lido sobre essas coisas e achava que eram bacanas. Mas não tinha a menor idéia de como os professores as iriam pôr em prática.
Depois, como no começo os programas de capacitação nos quais trabalhei eram ainda muito precários (como muitos ainda o são nos dias de hoje), num formato de pequenos cursos (distribuídos em módulos), não havia neles espaço para discussão das equipes de formadores. Quer dizer, havia espaço para tomar decisões sobre conteúdos e “dinâmicas”, mas não para a reflexão dos efeitos dessa prática no próprio formador e em seus grupos. Ainda que muitas das propostas fossem sérias e baseadas em teorias bem fundamentadas, era no conteúdo que se centravam todas as escolhas para o perfil de um projeto de formação de professor.
Por fim, havia ainda a dificuldade para determinar quais deveriam ser os objetivos prioritários de cada um desses projetos de formação. Em alguns, a equipe de formadores nem participava da elaboração do projeto, recebendo o material e o como fazer já prontos das equipes de coordenadores. Isso, evidentemente, dificultava a compreensão dos objetivos e da finalidade das estratégias, o formador cumpria um papel de mero aplicador de conteúdos desencontrados. Se, por um lado, isso facilitava o trabalho, porque me desobrigava a pensar no que fazer, por outro, me obrigava a enfrentar salas repletas de professores reais que, diante da obrigatoriedade de lá estar, viam-se num contexto inseguro: o do próprio projeto de formação (a serviço de demandas governamentais com a educação, mas sem necessariamente ter implicação com os sujeitos que fazem a educação) e da formadora inexperiente (este foi o meu caso nos primeiros programas dos quais participei) para lidar com as demandas e problemas desse contexto.
O que ficava para mim, dessa realidade, era a insatisfação e a angústia, que me exigiam reflexão, busca, discussão, troca, lugar de escuta.

[Continua na próxima postagem, sob o título "Auto-avaliação" - parte 3]
Eliane Aguiar

19.2.08

Auto-avaliação - parte 1

Aqui está a primeira parte do texto Auto-avaliação, anunciado na postagem anterior.
Não sei dizer exatamente quando iniciei meu trabalho como formadora de professores. Mas sei dizer que isso aconteceu meio sem eu perceber; meio que por acaso. Tinha lá por volta dos 20 e poucos anos, uma suposta boa formação e alguns amigos que iam me indicando para cursos, seminários, palestras, oficinas para professores de redes de ensino pública (municipal e estadual) e privada.
E eu, ousada e um tanto quanto inconseqüente, aceitava essas indicações, porque as atividades complementavam meu salário de professora. E também porque havia nelas algo que me desafiava. A ousadia, hoje sei, estava no fato de que minha própria experiência como professora era ainda bastante superficial e precária. Inconseqüência, porque achava que bastava preparar uma apostila, ler alguns textos e pronto. Estaria pronta para enfrentar os professores e as demandas que as situações de formação apresentavam. Eu não fazia idéia de que para ser um formador era necessário um nível de implicação e responsabilidade que estava além da preparação de um curso ou da leitura de meia dúzia de textos.
Entre esse começo e os dias de hoje, mais de uma década se passou e, evidentemente, minha relação com o trabalho de formação de professores foi se transformando e me transformando como profissional. Talvez porque várias dessas situações tenham me colocado diante do “aprender fazendo”, o que, de algum modo, mesmo que ainda bastante nebuloso, me obrigava a refletir sobre minhas ações, questionando-me e às propostas que fazia aos professores.
O que mudou foi algo da ordem da escolha. Se antes, aceitava o trabalho porque pagava mais do que ficar na sala de aula, com 50 alunos e apostilas vazias de vida, e também porque massageava o meu ego (era muito bom dizer que eu estava dando um curso para professores e ouvir deles e das outras pessoas: “tão novinha e tão inteligente!”), com o tempo, fui percebendo que gostava de estar com os professores e conversar com eles sobre as coisas do ensino de língua. E, conseqüentemente, da leitura e da escrita, minhas duas grandes paixões. Mais ainda: eu gostava de escutá-los em suas angústias, em suas dúvidas, em suas certezas, em suas dores, porque essas coisas me humanizavam e me faziam reconhecer no outro, professor, um pouco de mim mesma em minhas próprias angústias, dúvidas, certezas e dores como professora e como formadora. Aos poucos, fui escolhendo estar com os professores e com estudantes que seriam professores, porque
  • gostava de estar com eles (condição essencial para ser uma formadora);
  • era curiosa e queria saber como eram os bastidores das salas de aulas onde esses professores atuavam;
  • tinha disponibilidade para estudar e refletir sobre a função de formador de professores e sobre o papel do professor que trabalha com o ensino de língua;
  • me incomodava a minha formação “excessivamente acadêmica”, burocrática e tão desvinculada da vida que respira nos espaços escolares (sentia-me insatisfeita com a minha própria prática como professora, porque só conseguia reproduzir os modelos de professor que tive: conteudistas, teóricos etc.);
  • encontrava no trabalho com os professores mais prazer e vontade de aprender. Além disso, sentia-me mais criativa quando trabalhava com eles do que como professora, em salas de aulas convencionais;
  • as situações como formadora eram, para mim, muito mais ricas do ponto de vista das problematizações (eu me questionava muito mais quando estava com professores do que quando estava com meus alunos, em sala de aula).

Enfim, acredito que esse conjunto de coisas, organizadas paulatinamente, na medida em que eu me envolvia em uma nova situação de formação, foi me ajudando a pensar o que era (ou deveria ser) um formador de professores e o que eu não era como professora e ainda não era como formadora, mesmo exercendo essa função.

[Continua na próxima postagem, sob o título Auto-avaliação - parte 2]

Eliane Aguiar

18.2.08

Quando olhar para o próprio “umbigo” ajuda a enxergar para além dele

Em 2007, participando de um grupo de formação de professores, na condição de professora-formadora, minha coordenadora sugeriu-nos que fizéssemos uma parada estratégica para avaliar o quanto havíamos andado e como estávamos nos sentindo em relação ao trabalho que vínhamos fazendo com professores de uma rede municipal de ensino do Estado de São Paulo. Para facilitar a tarefa, ela forneceu-nos um conjunto de questões e um texto teórico a partir do qual deveríamos nos pautar para respondê-las. O texto era um capítulo do livro "Formação reflexiva de professores: estratégias de supervisão", de uma autora portuguesa chamada Izabel Alarcão. As questões versavam sobre aspectos relacionados diretamente às estratégias de formação discutidas por Alarcão e sobre nossa postura pessoal e profissional como formadoras de professores. As respostas...
...bem, as respostas resolvi escrevê-las utilizando-me de um recurso bacana quando falamos em formação de professores: “as narrativas autobiográficas do professor como estratégia de desenvolvimento” (aliás, este recurso também é discutido num outro capítulo de Alarcão). Achei que olhar para minha história como formadora poderia me ajudar a avaliar melhor o que ando fazendo (ou não). O exercício foi bastante produtivo, na época, e compartilhá-lo aqui parece coerente com nossa proposta de trocar experiências, refletir sobre nossa prática, contar sobre coisas da educação, da língua, da leitura, da escrita.
A seguir, então, o texto (adaptado) auto-avaliativo que escrevi para aquela ocasião, publicado aqui em três partes. Embora a ênfase seja no trabalho do formador de professores e esteja inserido em um contexto particular de formação, as questões postas nesse texto podem ser as mesmas feitas pelo professor. Afinal, parece-me impossível, em uma ou outra atividade, não questionar, angustiar, buscar, desejar, experimentar, rever...
[Continua na próxima publicação, sob o título Auto-avaliação - parte 1]
Eliane Aguiar

14.2.08

Na mídia (2)

Mais um caso de "achado" na internet. Dia 16 de setembro, foi publicada no jornal O Estado de São Paulo uma entrevista com um editor chamado Lindsay Waters. Ele trabalha na Harvard University Press e escreveu um livro intitulado "Inimigos da Esperança – Publicar, Perecer e o Eclipse da Erudição" (Editora Unesp, 96 págs., 17 reais). De sua fala – muito instigante, diga-se – destaco três partes:
a) “Outro dia li no New York Times alguém anunciando pela enésima vez a morte do livro e fiquei pensando: é isso o que o mercado está dizendo? Não exatamente. O que o mercado está dizendo é que precisamos produzir livros com títulos mais atraentes, linguagem acessível e prefácios mais esclarecedores. Gasto horas discutindo títulos com meus autores e tentando persuadi-los a mudar os originais (...).”
b) “Escrevi o livro com a esperança de mudar esse estado de coisas. O modelo que as universidades adotam para a publicação de livros é o mesmo de uma fábrica de automóveis. Elas exigem produtividade, mas não exatamente qualidade. Acho que o cerne da questão são os números e a atitude reducionista dos administradores universitários. Como se pode reduzir as coisas do espírito a números? (...) Escrevi um livro propondo um movimento em direção oposta, o ‘slow reading’ (leitura lenta), para que as pessoas esqueçam essa mania de ler tudo rápido sem entender o conteúdo. Da mesma forma, se você escreve um livro por ano, não pode mesmo produzir uma obra relevante. Isso é loucura.”
c) “O editor que não quer publicar pelo bem da ecologia.”
Comentando brevemente os três pontos (há outros na reportagem), a discussão sobre a linguagem acadêmica pareceu-me fundamental. Na entrevista, fica claro que ele não está pensando em uma escrita simplista, mas em achar formas que aliem rigor intelectual e legibilidade para um público mais amplo. Já a questão da quantidade aborda um aspecto central de nossa relação com a cultura: escrever muito, mas, “por tabela”, produzir muita insignificância. Concordo novamente: não há como produzir textos realmente relevantes em intervalos de tempo tão curtos.
Por fim, conseqüência do item anterior, produzir demais, além de muita escrita que ninguém vai ler, destrói a natureza. Pode parecer um pensamento ingênuo, mas, se fizermos a conta da produção mundial de livros, dissertações e teses e de quanto papel é necessário para mantê-la, creio que chegaremos a um número assustador.
Débora de Angelo

13.2.08

O tempo redescoberto

Não é sempre que paramos para pensar sobre nosso aprendizado, de um ponto de vista escolar, durante nossa história. Em outras palavras: o que a escola ensinou, efetivamente, que não foi aprendido em outro lugar, com outros tipos de relações?
De fato, não faz muito sentido efetivar esse questionamento a todo instante. Mas, por vezes, pode ser oportuno acrescentarmos mais esse olhar aos assuntos pedagógicos – não único ou excludente, fique claro. Afinal, perspectivas pessoais também pertencem à história e as vivências do professor parecem especialmente marcadas pelo fato de, naturalmente, serem construídas a partir das tantas situações que passou como aluno, professor, a que viu em outros, alunos e colegas, entre outras possibilidades.
Porque a memória pode ser entendida como processo de resignificação que parte do presente e relê o passado, destacando o que, a partir da atualidade, parece ter sido fundamental. Nesse processo, muitos dados podem misturar-se, senão de um ponto de vista factual, certamente pelo significado que atribuímos a eles; disso oriunda a soma de experiências do que somos agora.
Feito esse preâmbulo, voltemos à questão inicial. De minha parte, pus-me recentemente – devido a várias discussões pedagógicas, tanto interiores como exteriores – a refletir sobre o papel da escola em minha vida, sob o ponto de vista do que entendo ter aprendido em sala de aula. Claro, não é apenas ali que o aprendizado ocorre. Mas, nesse momento, gostaria de centrar atenção nesse foco: um tópico que apareceu de forma destacada foi o desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita.Todas as instâncias de ensino passadas parecem ter contribuído, de alguma maneira, para que isso ocorresse. A alfabetização, as redações e leituras escolares, as pesquisas e produções de textos na graduação e na pós. Pelo menos em processo de rememoração, a somatória das tantas atividades propostas feitas pelos professores foi, lentamente, contribuindo, de maneira relevante, nesse desenvolvimento de habilidades leitoras e de escrita.
O que me chamou a atenção nessa “volta ao passado” foi visualizar essa soma como um processo: não houve um momento isolado, o contato com esse ou aquele professor, ou um certo período escolar específico, que tenha se sobressaído. Tudo o que foi vivido, cada uma das propostas feitas e efetivamente realizadas, apresentou-se como uma micro partícula desse aprendizado. Não que com isso estejamos desconsiderando a importância maior ou menor de um grupo de professores e propostas que fizeram uma diferença especial. Mas o fato é que, voltando ao passado, o que surgiu foi o volume, a soma de tudo. Como se o que cada um contribuiu em particular não fosse exatamente mensurável, nem pudesse ser desprezado. E então pensei: muitas vezes, em sala de aula ou durante o processo de contato que estabelecemos com os diversos alunos, talvez nos perguntemos no que, de fato, contribuímos para a formação de cada estudante.
Não creio que seja possível – a nós, a eles ou a qualquer um que se puser tal questionamento – ter certezas nesse sentido. Tampouco toda essa reflexão deve ter como falso subentendido que, se vamos fazer parte de um processo de formação, a maneira como o fazemos não tem importância. Nesse sentido, o conjunto “nosso próprio senso crítico”, os “sinais que notamos em sala, nas atividades, entre outros”, “o contato com nosso amplo contexto escolar” (colegas, coordenação, direção, também entre outros), bem como “os processos de avaliação pelos quais passamos” podem ser vistos como importantes indicadores da qualidade e comprometimento de nossa atividade docente. No entanto, dizer que o processo de formação de um estudante possa, realmente, ser mensurado e controlado por meio de objetos e resultados de avaliação (do professor, da escola, das instâncias governamentais, de estudos nacionais e internacionais), em um momento pontual, talvez seja não dar ao tempo, aos processos individuais e à somatória de experiências seu devido espaço de direito e existência.

Débora de Angelo

Referências: PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. Rio de Janeiro: Globo, 1995.BENJAMIN, Walter. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Obras escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 2004.

12.2.08

Na mídia

Pesquisas na internet são ótimas. Quase sempre encontramos o que queremos e, normalmente, achamos o que não queremos. Num desses achados não programados, li uma matéria intitulada “A nova arte de aprender”, publicada na revista Superinteressante de setembro/2007 (Edição 243). O artigo apresenta algumas descobertas recentes da neurociência, a respeito do sistema cognitivo humano, que poderiam ser aplicadas na sala de aula, facilitando a aprendizagem. Nada de neurolinguística, felizmente (os adeptos que me perdoem, mas eu confesso um certo preconceito...), mas aspectos físicos que teriam grande influência na qualidade do aprendizado.
De “descobertas” que não são novidade alguma (“o aluno precisa estar bem alimentado”; “a memória depende do sono”) a informações que realmente fazem jus ao nome da revista (“os hormônios da adolescência pedem pelo menos 9 horas de sono por dia e fazem a atenção dos jovens só atingir o pico às 11 horas”), a matéria desmistifica alguns chavões a respeito do cérebro e da educação, como aquela velha história que afirma que usamos apenas 10% de nossa capacidade cerebral, ou que existem alunos visuais, auditivos ou sinestésicos. A base do artigo é o livro de Koji Myiamoto, Understanding the brain: the birth of a learning science (“Entendendo o cérebro: o nascimento de uma ciência do aprendizado”, sem edição brasileira), e traz depoimentos de pesquisadores e professores da UFMG e da USP.
Tais descobertas da neurociência propõe que as aulas do período da manhã deveriam começar mais tarde, especialmente no ensino médio, e que deveriam ser mais curtas, com pausas e exercícios diferentes, visando auxiliar a memorização. Outra proposta é espalhar as avaliações ao longo do tempo, ao invés de concentrar as provas em uma semana, pois esse sistema dificultaria a aprendizagem de longo prazo.
Será que é possível implantar essas propostas? Seria válido tentar? Certamente não dá para começar as aulas do período da manhã mais tarde, nem reduzir os atuais 50 minutos de cada aula, pelo menos por enquanto. Mas dividir a apresentação de conteúdo em pequenos blocos de 10 minutos, separados por pausas com exercícios fora do tema apresentado, talvez seja interessante. Quem se habilita?
Além de apresentar essas novas teorias, o artigo questiona o sistema de alfabetização construtivista de Jean Piaget, propondo a volta do método fonético. Isso me lembra uma história...
Final de domingo diferente, visita dos tios, muita brincadeira, delícia de dia.
- Letícia, você já fez a lição?
- Não, mamãe.
- Como, não? Já tá de noite e amanhã de manhã vamos ao médico! Pega seu caderno agora! Vamos, vamos!
Desânimo, lentidão. Caderno aberto sobre a mesa.
- Deixa eu ver. Ah, tá fácil, é só copiar a frase três vezes. Vai, Letícia, sem moleza, hein? Vai, “Fábio afia a faca”. Fácil, né? Então vai. “Fábio afia a faca”.
Sozinha na sala, lápis na mão direita, a pequena cabeça apoiada na mão esquerda, um ar desolado e a pergunta que não quer calar:
- Mas quem é Fábio?
Angela Annunciato

11.2.08

Enquanto isso, na sala de aula...

O contexto era o seguinte: em uma aula voltada aos estudos da comunicação, de uma disciplina oferecida em todos os cursos da universidade, foi solicitado aos estudantes que redigissem um convite personalizado, tendo como referência estilos apresentados por personagens de uma série televisiva.

E o pedido foi claro: “misturem aspectos verbais e visuais”. No entanto, como professora de Língua Portuguesa, devo confessar que minha expectativa centrava-se no universo das palavras. Imaginei receber uma folha com o texto, alguma cor e estilo de letra. Só.

Sim, recebi alguns exatamente desse jeito. Mas também vários outros, muito diferentes: designs de envelopes variados e bonitos, alguns mesmo com três dimensões; trabalhos com cores, imagens e, claro, com o texto escrito.

Reconheço que as produções ficaram muito além do que esperava. E tenho certeza de que esse fenômeno não se deu por um especial envolvimento dos alunos com a disciplina ou com minha figura. O que aconteceu ali foi, a meu ver, um momento de “epifania pedagógica”.

Percebi que não seria capaz de produzir metade daqueles convites, nem sequer pensaria em fazê-los daquela forma. Simplesmente porque não desenvolvi aquelas habilidades no decorrer da vida. Os alunos as possuem e talvez alguns tenham menos facilidade em organizar frases, orações e períodos. Mas será que um convite é menos embalagem do que o texto escrito? Minha epifania foi poder me perguntar: por que essa primazia do verbal? Ele é mais importante mesmo ou não sei ver de outro modo? Não seria aquela uma forma de “interpretação de um texto” tão legítima quanto qualquer outra feita com signos verbais?

Guardadas as devidas proporções, creio que a situação vivida diz respeito aos professores de LP (ou mesmo de outras áreas), de forma geral. Defendemos a supremacia dos vocábulos, devido à nossa formação e prática profissional, e talvez estejamos nos esquecendo de que há muitas outras habilidades a serem desenvolvidas em outras linguagens.

Mais do que isso: se observarmos de forma menos mecânica, é provável que todas possam ser encaradas como formas de leitura e produção de textos; basta apenas que as encaremos dessa forma. Não que o que escrevemos e o modo como o fazemos não importe. Porém, em uma sociedade imagética como a nossa, de repente me pareceu um tanto estranho esse apego quase atávico ao mundo das palavras.

Débora de Angelo

Ler para...

Daniel Penac, em seu livro "Como um romance", diz que o verbo ler não suporta o imperativo. Aversão que partilha com alguns outros: o verbo amar...o verbo sonhar...Bem, é sempre possível tentar, é claro. Vamos lá: “Me ame”! “Sonhe!” “Leia”!” Leia logo, que diabo, eu estou mandando você ler!”Assim como não fica bem mandar que alguém nos ame, a menos que o uso do imperativo esteja inserido num jogo de sedução (e disso ninguém reclama), também parece estranho que alguém nos obrigue, imperativamente, a ler. Afinal de contas, assim como amar ou sonhar, o ato de ler deveria estar sempre associado a escolhas do leitor que, diante de necessidades pessoais, decide ler isso ou aquilo, agora ou depois.
Sim, porque, no fundo, mesmo que a leitura aparentemente esteja relacionada a coisas externas ao leitor (um trabalho escolar solicitado pelo professor; um texto teórico para a discussão em um grupo de estudo etc.), é sempre fruto de uma escolha: estar inserido em diferentes contextos e querer exercer um papel. Leitores experientes sabem disso e não se sentem realmente “obrigados” diante de tal imperativo de que nos fala Penac. Digamos que o ato de ler para esses leitores seja sempre um jogo de sedução que, mesmo disfarçado pelo compromisso externo, lhes apresenta uma promessa de prazer sublimado.
O que de prazer cada leitor, em particular, alcança, tem a ver evidentemente com sua história de vida e seu repertório. E não pode ser dimensionado pelo outro por ser indizível. De fora, ficamos com tênues palavras que, com mais ou menos intensidade, revelam apenas um pouco da experiência de ler. De dentro, ficamos com nossas impressões, sensações, revelações, idéias, despertares... e tudo o mais que, por vezes e com um pouco de sorte, nos leva ao encontro das epifanias que nos sustentam o corpo e a alma.
Sem dúvida, não é desse tipo de leitura que tratamos em nossas salas de aulas, infelizmente, porque lá, na escola, ler é imperativo que se define como obrigação: ler para conhecer autores; ler para estudar gramática; ler para saber literatura; ler para estudar para a prova; ler para...não gostar de ler. Nada parece menos surpreendente do que o depoimento de crianças e adolescentes sobre o quanto o ato de ler se mostra vazio de sentido. Uma vez que a leitura relaciona-se com todos os conteúdos a serem ensinados na escola, sendo tratada como meio para se atingir objetivos externos a ela, perde-se enquanto fim em si mesma. E deixa perdidas todas as possibilidades de que, nesse contexto, leitores se constituam como sujeitos ao se servirem desse instrumento de cultura e prazer. Gustave Lanson (1894), um homem com idéias bem avançadas para sua época, dizia que a leitura (de literatura) deveria servir ao aperfeiçoamento intelectual, produzindo prazer intelectual. Ao invés de se estudar literatura para saber literatura, era preciso ler literatura e amá-la.
Desse modo, voltamos ao começo e relacionamos novamente ler com amar. O despertar do leitor não se dá gratuitamente, diante da imposição do verbo. É preciso a promessa implícita no jogo que oculta e revela, diz e cala, encontra e despede, descobre e permite que o leitor seja um sujeito com direitos: “de não ler; de pular páginas; de reler; de ler qualquer coisa; de ler em qualquer lugar; de ler uma frase aqui outra ali; de ler em voz alta ou de simplesmente calar”. (Penac, 1993) Um sujeito que, no final das contas, pode ser qualquer um de nós, resgatado nas palavras lidas que nos contam de nossas experiências.
Daí, contamos histórias e seduzimos o outro, que sonha, ama e lê, porque se quer seduzido...
Eliane Aguiar

Um convite à leitura

“Desenhar andorinhas no casco das tartarugas”, eis o convite de nosso blog. Cada uma de nós, as três cronópios, vai compor esse desenho de um jeito próprio, singular, tratando de muitos temas, idéias, dúvidas, amores... pela língua e pela Educação. Por isso, não estranhe se encontrar em nossos textos vozes diferentes. Nem estranhe se mudarmos o tom. Como num desenho, nossas andorinhas mudam de cor conforme o céu a que têm direito, a mão que as traça, a voz que as conta.
Abaixo de todo texto que publicarmos, deixaremos a identificação da autora para que você saiba a quem recorrer depois, caso queira deixar um recado, fazer alguma pergunta, acrescentar alguma outra reflexão. E também para que você localize a proposta de cada nova publicação, identificando possíveis seqüências. Por exemplo: hoje, estamos publicando o texto “Ler para...”, que dará início a uma discussão sobre o ensino de leitura na escola. Outros textos, portanto, serão publicados depois, nos ajudando a compor um modo de pensar esse tema. Esperamos que você volte para lê-los!

7.2.08

Mas, afinal, o que é um cronópio?

Muitas são as discussões a respeito desse termo, criado por Julio Cortázar em 1952, quando aparece no título de um artigo sobre Louis Armstrong. Dez anos depois, o livro Histórias de Cronópios e de Famas apresenta os cronópios como “objetos verdes e úmidos”, protagonizando 20 histórias, ao lado dos famas e das esperanças. Personagens de ficção, metáfora para poetas e loucos, criaturas sensíveis e idealistas que “perdem a conta dos dias”, que seja. Nada melhor do que definir um cronópio através de uma de suas histórias.

“Agora acontece que as tartarugas são grandes admiradoras da velocidade, como é natural. As esperanças sabem disso e não ligam. Os famas sabem e caçoam. Os cronópios sabem e, cada vez que encontram uma tartaruga, puxam a caixa de giz colorido e na lousa redonda da tartaruga desenham uma andorinha.”

Acreditamos que trabalhar com educação seja mais ou menos isso: desenhar andorinhas no casco das tartarugas. Por isso, somos cronópios.