De desejos e palavras...
Eliane Aguiar
Em uma realidade escolar na qual a língua escrita não se mostra como um lugar por onde a singularidade dos sujeitos possa vazar, cerceada por professores de desejos secos, fazedores quando muito de escritas e leituras que se arrastam por falta de eco, a experiência educativa não se deixa encontrar.
Inevitável perguntar: onde foram parar os desejos desses professores? Onde foi parar o sentido da escola? Em que lugar se enterrou vivo o sonho de transformar o mundo em um lugar melhor, com valores morais e éticos, os quais, entre outros valores, deveriam guiar os sujeitos ao encontro de infinitas experiências do viver?
Diante de tantas e tão grandes pedras no meio do caminho, o que fazer para tornar o ensino da língua escrita uma experiência e, conseqüentemente, um desafio constante para professores e alunos? Independentemente do rumo a tomar, das soluções mediadoras, é preciso reverter a ordem calcificada das práticas escolares, descolando-se de um imaginário que sufoca qualquer possibilidade de criação. É preciso ressuscitar os mortos vivos desse lugar escuro que é, hoje, a escola brasileira (são raríssimas as escolas que se fazem exceção) para fazer nascer daí qualquer coisa de belo como construção legitima do ser. É preciso fazer nascer desejo.
No que diz respeito ao ensino da língua escrita, o fazer nascer desejo tem de estar atrelado ao próprio sentido que o toque da língua propicia ao corpo do educador. Como a experiência é, mais do que a conjunção de fatos em si, a marca invisível das letras que fazem de cada sujeito um ser singular, é preciso que o educador redescubra essa marca em seu próprio corpo para descobrir de que matéria e de que palavras é feito. Para somente então se fazer valer dessa matéria e de sua relação vital com a palavra na sua prática como educador. Longe de perceber a língua e a prática educativa como uma técnica mecânica e linear, o educador tem de necessariamente ver-se na experiência da língua desafiado e desafiante.
Nesse contexto, pensar a formação de leitores e escritores é integrar o ensino da língua escrita a um projeto educativo maior, cuja premissa amplia a integração do sujeito ao mundo letrado, como uma atividade intelectual dinâmica em essência, que pressupõe a capacidade de construir sentidos aos variados gêneros textuais, dentro e fora do ambiente escolar. Desse modo, o estudante deve ser colocado diante de um universo amplo de gêneros textuais escritos que, inseridos na cultura, apresentam graus de complexidade diferentes e se valem de uma função social específica, propiciando-lhe um conhecimento de suas estruturas, características, linguagens, intenções etc. Para cada gênero, a leitura e a escrita precisam ser processadas a partir de especificidades próprias do texto e de seu lugar na cultura e na sociedade.
No que diz respeito, especificamente, à leitura de gêneros literários, é preciso garantir uma formação do estudante enquanto sujeito e enquanto leitor, capaz de apreender pela literatura as várias formas de representação do real. Dessa perspectiva, a literatura, por ser uma forma de representação do mundo e dos homens predominantemente criativa e com intenção estética, cuja linguagem ultrapassa o valor apenas comunicacional para chegar ao efeito da linguagem como manifestação cultural, é também uma das fontes mais profundas de construção e apreensão de conhecimento.
O ensino da língua escrita tem, pois, a tarefa de formar sujeitos leitores e escritores, possibilitando-lhes a construção de um olhar crítico e competente sobre a própria literatura como instituição social, sobre a linguagem verbal capaz de construir significados para as coisas do mundo, sobre o próprio mundo e suas ideologias e discursos, sobre o homem que habita esse mundo e sobre o próprio leitor e escritor diante do inusitado do texto. E pressupõe, enquanto tal, um trabalho regular de leitura, seja por fruição seja a partir de critérios de análise e reflexão diversos.
É preciso, para isso, que o educador (eu, você, o outro), lance mão de um diálogo entre o hoje e o ontem, estabelecendo sentido entre a escola e o mundo. Quer dizer, ao invés de “ensinar” uma língua cindida, desumanizada em sua essência pela palavra que não diz, tem a obrigação ética e moral de construir com o aluno uma compreensão da língua, no tempo e espaço, que possa dimensionar as invenções da linguagem (literária ou não) e suas mensagens, em cada momento da história humana, ampliando o olhar do estudante sobre as representações das experiências singulares do homem.
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