O DESAFIO PESSOANO: FRAGMENTOS PRELIMINARES
Publicaremos uma seqüência de brevíssimos ensaios (talvez a palavra mais apropriada seja “comentários”) sobre o processo pessoano denominado heteronimia. Longe de serem análises formais, podem ser compreendidos como “espaço de leitor” ou “olhar revisitado” da obra do poeta, pelo prisma de alguém que volta a seus textos, na maturidade leitora.
Desafio... Iniciamos esta conversa com pelo menos duas possibilidades interpretativas: desafio para Pessoa ou de Pessoa para o leitor?
Somando-se algumas leituras de parte de sua obra e de alguns comentadores, já um descarte faz-se necessário: para Fernando Pessoa não há desafio, pois não há projeto. Os heterônimos não são projetados pelo ortônimo, o chamado “Fernando Pessoa, ele mesmo”. Leyla Perrone-Moisés afirma, categórica: “é preciso dizer, de uma vez por todas, que Fernando Pessoa “ele mesmo” não existiu. Que o lugar designado por esse nome é um lugar desertado, que esse nome flutua na inter-dicção e margeia o discurso por ele assinado. É preciso render-se à evidência de sua perfeita invisibilidade, devido à sua perfeita divisibilidade. É preciso confessar que Pessoa é um poeta fictício, tão irreal quanto os heterônimos que inventou.”
Criação, todos. Caeiro, Campos, Reis e Pessoa. Um não precede os outros, apesar de um Fernando Antônio Nogueira Pessoa ter nascido em 13 de junho de 1888 e morrido em 30 de novembro de 1935. Em famosa carta a Adolfo Casais Monteiro, o poeta nos narra parte do fenômeno heteronímico: “Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida na maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou ou a quem suponho que sou. Dizia-o imediatamente, espontaneamente, como sendo de um certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho saudades deles.”
Sensata, a analista. Se não saem da imaginação, não foram projetados, arquitetados a priori. Discursivamente constituídos, em sentidos muito posteriores à existência do poeta, em seu nascedouro foram, antes de tudo, linguagem em movimento, fragmentos lingüísticos do real, representações simbólicas do mundo. Sua vida, propriamente, pois “ouve, sente e vê” as figuras que sabe serem apenas formas de representação.
As afirmações do poeta nos impedem algumas interpretações apressadas. Não se trataria de dupla personalidade? Provavelmente, não. Em estado de dupla (ou múltipla) personalidade, um ser não tem consciência do outro. No caso de Pessoa, todos têm consciência de todos, todos falam de todos (vide sua obra em prosa). Ao falar do surgimento dos heterônimos, Fernando Pessoa usa expressões como “nasceu em mim”, “me vi falando”, “foi o aparecimento de alguém em mim” etc. Desafio para nós: não há projeto, mas há consciência.
Quem sabe loucura de uma vida insana? Jacinto do Prado Coelho sintetiza: “Seus poemas são o que houve nele de vida. Em tudo mais não houve incidentes, nem há história.” Não há nada de fascinante na biografia de Fernando Pessoa. Família grande, irmãos, perda do pai, figura de um padrasto, juventude vivida na África do Sul (o que lhe dá uma forte formação em língua e literatura inglesas), maturidade em Portugal, muito álcool, várias publicações em revistas de vanguarda, vida profissional ligada ao jornalismo e à tradução, vida amorosa quase inexistente e escrita. Muita, muita, muita escrita: “Sua imensa produção escrita (a inesgotável arca, em contraste com sua pequena ambição de publicar) atesta um trabalho incessante e quase insano.”
Deixando de lado as patologias (talvez alguns traços de histeria, esquizofrenia, neurastenia, enfim...), talvez possamos pensar em um traço não de personalidade, mas de modernidade: Fernando Pessoa é um autor consciente de que o “eu” (e o “outro”) é um fingimento psíquico que se dá pela e na linguagem. Ainda segundo Leyla Perrone- Moisés, “os heterônimos não são fruto de uma rica imaginação tão-somente artística, ou a prova da versatilidade do Poeta, mas os cobrimentos de uma falha. Falta de ser e excesso de desejo (grifo meu) fazem implodir o sujeito que, ao tentar reunir diversos eus postiços num conjunto, precipita-se, pelo contrário, na experiência da dispersão sem volta. Pessoa não se multiplica para fora, mas para dentro(...).” E, segundo a autora, nesse caminho obsessivo, que muda de formas mas está sempre no mesmo lugar, a grande questão é “quem sou? E a resposta: Não sou nada.”
Eco dos primeiros modernos (Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e tantos outros), a obra pessoana, dentro de uma ótica capitalista, insere-se da “falta de utilidade”, decorativa ou sob “forma de lição”, o que faz do poeta “um ser desqualificado” socialmente. “Podemos ver em Pessoa um momento muito significativo, estética e socialmente, de uma linha que vem desde o Romantismo, e ao longo da qual o poeta se sente (se coloca) primeiro como Gênio, em seguida como maldito, depois como resistente heróico, e finalmente como desqualificado. Poeta maior do início de nosso século, Pessoa se auto-situa, em sua existência social, em seus poemas e páginas íntimas, como um gênio desqualificado.”
Eis nosso grande desafio: ver-se diante de obra tão multifacetada que, no entanto, não sai do lugar. Não seria essa também nossa condição de vida no mundo moderno? Desejamos muito, vivemos pouco; vemos muito, não entendemos quase nada. Mas talvez nós, assim como ele, pulsemos ainda por alguma energia, cada qual canalizando-a à sua maneira: “tematicamente, a poesia de Pessoa nega: nega a verdade, a unidade, a finalidade, a própria energia como esforço inútil. Mas em sua escrita teimosa, ela afirma um tipo de ação, a poesia, num mundo que não lhe quer dar mais nenhum lugar. É escrevendo que Pessoa qualifica o desqualificado: ‘Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei / A caligrafia rápida destes versos, / Pórtico partido para o Impossível’.”
Débora de Angelo
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