Cronópios Editora

Um espaço de discussão e aprendizado para professores de Língua Portuguesa.

6.4.08

Um leitura dos vazios de sentidos...

Eliane Aguiar

Enquanto sujeitos constituídos na linguagem, somos todos filhos do vazio. Mais que isso: filhos, irmãos, amantes do vazio que nos separa daquilo que o outro e o grande Outro nos pensa de nós. Há, no processo de interação dos sujeitos, sempre um rasgo que faz vislumbrar algo do real de cada um. É como se nas entrelinhas dos dizeres e dos silêncios, deixássemos entrever, sem mesmo o saber, uma intencionalidade que fala de coisas que não podem ser realmente nomeadas, mas são sabidas por nós, sujeitos, e pelo outro, o nosso leitor.

Também no texto, na palavra que vai tomando forma no texto, há sempre uma infinidade de vazios que estão ali justamente para dar o sentido, a forma, a lógica (nem sempre lógica) àquilo que precisamos desvendar em cada leitura, em cada espiadela pelo vão do não dito. A diferença é que, como diz Iser, não há o face a face em que se originam todas as formas de interação social. O leitor da palavra escrita não apanha no gesto seu autor. A interação, desse modo, dá-se no enfrentamento dessa palavra dura e restrita a si mesma, mas sempre acompanhada da possibilidade de ser preenchida nos espaços desabitados que vão se formando diante do olhar do outro, seu leitor.

É dessa palavra que os vazios deixam vazar, atravessados pela mancha que o outro-leitor lhes deposita, novas possibilidades, novos desejos. Na contingência do nonada, condição determinante para a inter-re-lação humana, são estabelecidas as relações de interação. E, projetivamente, o preenchimento dos vazios.

Isso porque o texto, objeto sempre em construção, espera ser atualizado pelo leitor, em suas várias escrituras dialogadas entre si. Nas lacunas, vazios, indeterminações, perdem em parte suas referências de contexto original para ceder lugar a outros contextos, atualizados pelo leitor, o qual faz as conexões a partir de seu repertório de leitura, de mundo, de vida, de experiências e de seus próprios vazios.

Assim como na relação direta sujeito-outro, também na relação texto-leitor, há, no preenchimento desses vazios, projeções daquilo que, enquanto leitores, desejamos que estejam presentes nos textos. É sempre, em última instância, o desejo que nos leva ao gozo da leitura ou ao seu sintoma criativo. Em outras palavras, o desejo carregado de vazios e significações por vezes indizíveis possibilita algum tipo de comunicação e interação entre o texto e seu leitor: o desejo de quem escreve e o de quem lê.

A instância do gozo determina o prazer fugaz e mortal do texto. Na ânsia de ver todos as lacunas preenchidas de sentido, geralmente o próprio, o leitor perde o texto, perde o desejo do autor nomeado na entrelinhas, perde-se enquanto sujeito. Projeta no texto o que exclusivamente é seu e acredita, mesmo que não tenha consciência disso, estar vendo no texto suas crenças e seus sentidos. Nesse caso, como o próprio Iser menciona, a interação fracassa, porque o leitor impõe ao texto algo que não pertence ao seu universo de significações ou às suas possibilidades de preenchimento.

Isso significa que, embora o texto apresente o espaço que é próprio do leitor, deixando que se instale nos recantos vazios de suas palavras, há uma regulamentação interna que pede o mínimo de coerência e lógica, mesmo que sejam elas invisíveis a olho nu. É como se, intrínseco às palavras que podem ser vistas, existisse um universo de pensamentos que flutuam entre os vazios, prontos para serem pescados pelo leitor. Não se pode simplesmente preencher esses vazios com qualquer coisa, com qualquer referência pessoal, sem que esse preenchimento seja regulado pelo invisível do texto.

O sintoma criativo da leitura, por sua vez, pode ser entendido pela própria interação estabelecida entre texto e leitor, cujos vazios são mediados pelo encontro de desejos: do autor e do leitor, ampliando o horizonte da leitura para um novo universo, que não é a realidade do autor nem, tampouco, a do leitor. Mas uma outra realidade que se pode construir na palavra escrita e que se faz presente no momento em que o leitor, vislumbrando nos rasgos do texto lapsos de sentido indizível, consegue produzir sentido, criando uma nova conectabilidade para além do que o texto concreto é capaz de exprimir.

Em última palavra, os vazios do texto, como os vazios da vida, são as faltas preenchidas pelo desejo. Mais que isso, são a possibilidade dos desejos aflorarem a fim de continuar produzindo sentido àquilo que, diante do olhar desatento e do gozo fácil, permanece calado, quieto, em silêncio.

Comentário baseado no texto: ISER, Wolfgang. “ A interação do texto com o leitor”. In: LIMA, Luiz C. (org.) A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.