Cronópios Editora

Um espaço de discussão e aprendizado para professores de Língua Portuguesa.

29.3.08

A poética de Alberto Caeiro

Alberto Caeiro é considerado um “mestre” pelos outros heterônimos. Álvaro de Campos diz: “o meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo”. Já Ricardo Reis, mais contido, afirma: “é notável que toda obra de fôlego, pela qual um indivíduo se institui mestre na sua categoria, é, ao mesmo tempo, obra de emoção e de pensamento”. Finalmente o ortônimo, ao analisar a carta astrológica de Caeiro, compara-o ao elemento fogo, chamando-lhe libertador: “operando sobre mim mesmo, me livrou de sombras e farrapos, me deu mais inspiração à inspiração e mais alma à alma.”
Nosso objetivo, neste breve percurso, é refletir sobre essa aura de mestre atribuída a Caeiro. Como se constrói? O que significa exatamente?
Principiemos tomando mais uma citação de Álvaro de Campos, em que narra partes de um diálogo estabelecido com o mestre: “ ‘Olhe, Caeiro... considere os números... Onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número – 34, por exemplo. Para além dele temos 35, 36, 37, 38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja número maior ...’. ‘Mas isso são só números’, protestou o meu mestre Caeiro. e depois acrescentou, olhando-me com uma formidável infância: ‘O que é o 34 na realidade? '."
A resposta de Caeiro impressiona Campos. Ao invés de concordar com o último em seu raciocínio lógico cartesiano, vai direto à fonte e pergunta o que os números são. Ou seja: não rebate um conhecimento com uma outro, apenas limita-se a dizer que essa é uma maneira de ver a realidade, uma maneira construída, pois “o que é o 34 na realidade? “. Sob a lógica, com certeza, há uma forma de representação, uma forma humana de recobrir.

“XLVI
(...)
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a natureza produziu."

No fragmento de poema acima, Caeiro afirma sua intenção de despir-se do olhar cultural, do peso imenso do saber que a civilização coloca sobre a natureza, o mundo, a existência em si de todas as coisas e todos os seres.
Sentir, portanto, não é entendido aqui como “expressão sentimental”. É o sentir ligado aos sentidos, ao olhar, predominantemente. Como se, de alguma forma, fosse possível resgatar um olhar humano original, primitivo. O paganismo, sim, pois não é ser pagão como oposição ao cristão: é o momento do nascedouro do homem apenas enquanto ser vivo de uma espécie.
Pensar, também, tem em sua obra sentido muito próprio. É visto como sinônimo de cultura, de encaixotar os sentidos, nunca como procedimento natural. Se analisarmos a construção de alguns de seus poemas, podemos acompanhar uma voz poética que olha o mundo e nega o pensamento. Nesse sentido, seu caráter filosófico é a negação absoluta da filosofia, seja ela científica ou religiosa.
No entanto...
“ Por mim, escrevo a prosa dos meus versos e fico contente (...)”
Mesmo afirmando-se primitivo e simples, Alberto Caeiro, como os demais heterônimos, não deixa de ser homem moderno. Assim sendo, revela suas próprias incoerências e relatividades. Poderia, romanticamente, mascará-las e “fazer de conta” que não existem. Mas não. Afirma a escrita e a produção de versos. Ou seja, nega a representação por meio da própria representação. Homem moderno, consciente, técnico. O poeta é um fingidor e assume seu fingimento dentro dos próprios textos.
Segundo o crítico Massaud Moisés, “(...) entre ele e a Natureza, ou entre e ele e sua naturalidade, se interpõe o véu da palavra e, por conseqüência, do pensamento. É pensando que visa a ser natural, ou seja, despojado de pensamento, reduzido à pura existência. É por meio da intelectualização que persegue a simplicidade das coisas naturais – flores, regatos, árvores etc."
Intelectualização dissimulada em aparente simplicidade:

“Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
(...)”

Em apenas dois versos, podemos pensar em pelo menos três representações sobrepostas: sonho de meio dia será visão? pesadelo? (1) A afirmação do sonho (2) e da fotografia (3) dentro do sonho. Ou seja: todo o despir que virá depois assume-se como forma de representação, triplamente constituída. Será uma representação, dentro de outra e de outra. Pura teoria da relatividade...
Tão fingindo quanto os outros? Quem sabe mais do que os outros. Pois simula não pensar, simula ser, simula sentir, simula entrar em reconciliação com o mundo do corpo, das sensações, mesmo que ficcionalmente. Segundo Leyla Perrone-Moysés, “Em Alberto Caeiro, o sujeito pretende fundir-se ao objeto no simples existir. Caeiro é a trégua nessa luta. O Eu deixa de perguntar-se “quem sou” para afirmar apenas “sou”. Em vez de ser olhado, por outro ou por si mesmo, Caeiro olha para fora. Caeiro não pensa, existe; não é uma mente que especula, é um corpo que sabe. É claro que tudo isso é o que Caeiro diz ser, deseja ser, finge ser, aplica-se a ser com relativo êxito. Porque Caeiro também é uma ficção, a ficção da reconciliação."
Talvez por isso mestre. Mestre dos mestres.

Débora de Angelo

Bibliografia:
MOISÉS, Massaud. O guardador de rebanhos e outros poemas (Cultrix)
MOISÉS, Leyla Perrone. Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro (Cia das Letras)
PESSOA, Fernando. Obra em prosa e Obra poética (Aguilar)

17.3.08

Um ensino que permite a existência de sujeitos



Eliane Aguiar


O ensino da língua portuguesa, a partir da concepção de letramento, organiza-se por duas vias inseparáveis: é objeto de conhecimento e meio para o conhecimento. Ou seja, na mesma medida em que se apresenta como matéria a ser dissecada, proporciona ao sujeito a construção e compreensão de conhecimentos do mundo. E, portanto, não pode ser pensado de modo fragmentado, como mera decodificação de conteúdos e reprodução de idéias, desconsiderando a vida real de seus falantes, desvalorizando seus conhecimentos prévios e a legitimidade de seu saber; descontextualizando o ensino no exercício mecânico e repetitivo; desvirtualizando a gramática ao valorizar regras específicas de uma variedade em detrimento das muitas outras existentes.
Uma vez que a língua só se faz existir no movimento real do processo enunciativo, quando cada ato da linguagem produz sentido, é preciso levar em conta que as práticas de linguagem são uma totalidade e, portanto, não podem, na escola, ser apresentadas de maneira fragmentada, sob pena de não se tornarem reconhecíveis e de terem sua aprendizagem inviabilizada. Ainda que didaticamente seja necessário realizar recortes e descolamentos para melhor compreender o funcionamento da linguagem, é fato que a observação e análise de um aspecto demandam o exercício constante de articulação com os demais aspectos envolvidos no processo (PCN- terceiro e quarto ciclos). Esta concepção da linguagem baseia-se no fato de que, ao mesmo tempo em que a língua permite a comunicação entre os indivíduos, permite também a constituição da personalidade e da própria existência dos sujeitos.
Desse modo, a velha idéia de que a função da escola é garantir ao aluno um repertório de estruturas utilizadas em determinadas situações sociais não dá conta de instrumentalizá-lo para a comunicação eficiente. Faz-se necessário pensar no que significa auxiliar o aluno a construir a sua autonomia no uso da linguagem, o que implica alterar os conteúdos selecionados e priorizados no trabalho escolar, bem como o encaminhamento e o enfoque didático adotados. Os estudos acerca do letramento, nesse contexto, pressupõem inevitavelmente um outro paradigma metodológico, subvertendo a visão estática do ensino de língua. As ações educativas, na escola, passam a ser mediadoras diretas entre o estudante, os conteúdos escolares, a sociedade e a cultura.
Sob esse prisma, o ensino da língua materna passa a ser compreendido como mais um tipo de prática social do letramento, cuja premissa é levar o estudante a descobrir-se como sujeito de um determinado espaço, tempo e cultura, permitindo que ele pense, reflita e confronte sua fala e escrita, nas mais variadas situações e contextos. É necessário, portanto, pensar esse ensino como uma construção dos conhecimentos com os quais o sujeito faz funcionar as práticas da linguagem, reconhecendo os seus mais variados usos orais e escritos e refletindo sobre o modo como a língua se organiza e se realiza nessas práticas. Se por um lado, o sujeito fala, escuta, lê e escreve, compondo-se como um sujeito constituído por esse uso, de outro, aprende a pensar sobre sua ação, elaborando um conhecimento sobre a língua e suas estruturas de funcionamento.
O estudo dessa articulação, correspondendo às práticas de escuta, leitura, produção de textos (uso da língua) e de análise lingüística (reflexão da língua), permite a ampliação da competência lingüística dos sujeitos e, como conseqüência direta, abre as portas da linguagem para a construção de um conhecimento reflexivo de algo que, como falante de sua língua, já conhece intuitivamente. O foco do letramento, desse modo, recai sobre um ensino de língua integrado a diferentes áreas do saber, obrigando o educador a repensar o seu espaço pedagógico. E, portanto, a pensar uma escolarização a partir da qual o sujeito aprenda a simbolizar as experiências (suas e dos outros) via palavra (oral e escrita), refletindo sobre elas mediante o estudo da língua, instrumento que lhe permite organizar a realidade na qual se insere, construindo significados, nomeando conhecimentos e experiências, produzindo sentidos, tornando-se sujeito.

9.3.08

De desejos e palavras...



Eliane Aguiar

Em uma realidade escolar na qual a língua escrita não se mostra como um lugar por onde a singularidade dos sujeitos possa vazar, cerceada por professores de desejos secos, fazedores quando muito de escritas e leituras que se arrastam por falta de eco, a experiência educativa não se deixa encontrar.

Inevitável perguntar: onde foram parar os desejos desses professores? Onde foi parar o sentido da escola? Em que lugar se enterrou vivo o sonho de transformar o mundo em um lugar melhor, com valores morais e éticos, os quais, entre outros valores, deveriam guiar os sujeitos ao encontro de infinitas experiências do viver?

Diante de tantas e tão grandes pedras no meio do caminho, o que fazer para tornar o ensino da língua escrita uma experiência e, conseqüentemente, um desafio constante para professores e alunos? Independentemente do rumo a tomar, das soluções mediadoras, é preciso reverter a ordem calcificada das práticas escolares, descolando-se de um imaginário que sufoca qualquer possibilidade de criação. É preciso ressuscitar os mortos vivos desse lugar escuro que é, hoje, a escola brasileira (são raríssimas as escolas que se fazem exceção) para fazer nascer daí qualquer coisa de belo como construção legitima do ser. É preciso fazer nascer desejo.

No que diz respeito ao ensino da língua escrita, o fazer nascer desejo tem de estar atrelado ao próprio sentido que o toque da língua propicia ao corpo do educador. Como a experiência é, mais do que a conjunção de fatos em si, a marca invisível das letras que fazem de cada sujeito um ser singular, é preciso que o educador redescubra essa marca em seu próprio corpo para descobrir de que matéria e de que palavras é feito. Para somente então se fazer valer dessa matéria e de sua relação vital com a palavra na sua prática como educador. Longe de perceber a língua e a prática educativa como uma técnica mecânica e linear, o educador tem de necessariamente ver-se na experiência da língua desafiado e desafiante.

Nesse contexto, pensar a formação de leitores e escritores é integrar o ensino da língua escrita a um projeto educativo maior, cuja premissa amplia a integração do sujeito ao mundo letrado, como uma atividade intelectual dinâmica em essência, que pressupõe a capacidade de construir sentidos aos variados gêneros textuais, dentro e fora do ambiente escolar. Desse modo, o estudante deve ser colocado diante de um universo amplo de gêneros textuais escritos que, inseridos na cultura, apresentam graus de complexidade diferentes e se valem de uma função social específica, propiciando-lhe um conhecimento de suas estruturas, características, linguagens, intenções etc. Para cada gênero, a leitura e a escrita precisam ser processadas a partir de especificidades próprias do texto e de seu lugar na cultura e na sociedade.

No que diz respeito, especificamente, à leitura de gêneros literários, é preciso garantir uma formação do estudante enquanto sujeito e enquanto leitor, capaz de apreender pela literatura as várias formas de representação do real. Dessa perspectiva, a literatura, por ser uma forma de representação do mundo e dos homens predominantemente criativa e com intenção estética, cuja linguagem ultrapassa o valor apenas comunicacional para chegar ao efeito da linguagem como manifestação cultural, é também uma das fontes mais profundas de construção e apreensão de conhecimento.

O ensino da língua escrita tem, pois, a tarefa de formar sujeitos leitores e escritores, possibilitando-lhes a construção de um olhar crítico e competente sobre a própria literatura como instituição social, sobre a linguagem verbal capaz de construir significados para as coisas do mundo, sobre o próprio mundo e suas ideologias e discursos, sobre o homem que habita esse mundo e sobre o próprio leitor e escritor diante do inusitado do texto. E pressupõe, enquanto tal, um trabalho regular de leitura, seja por fruição seja a partir de critérios de análise e reflexão diversos.

É preciso, para isso, que o educador (eu, você, o outro), lance mão de um diálogo entre o hoje e o ontem, estabelecendo sentido entre a escola e o mundo. Quer dizer, ao invés de “ensinar” uma língua cindida, desumanizada em sua essência pela palavra que não diz, tem a obrigação ética e moral de construir com o aluno uma compreensão da língua, no tempo e espaço, que possa dimensionar as invenções da linguagem (literária ou não) e suas mensagens, em cada momento da história humana, ampliando o olhar do estudante sobre as representações das experiências singulares do homem.

3.3.08

O DESAFIO PESSOANO: FRAGMENTOS PRELIMINARES


Publicaremos uma seqüência de brevíssimos ensaios (talvez a palavra mais apropriada seja “comentários”) sobre o processo pessoano denominado heteronimia. Longe de serem análises formais, podem ser compreendidos como “espaço de leitor” ou “olhar revisitado” da obra do poeta, pelo prisma de alguém que volta a seus textos, na maturidade leitora.

Desafio... Iniciamos esta conversa com pelo menos duas possibilidades interpretativas: desafio para Pessoa ou de Pessoa para o leitor?
Somando-se algumas leituras de parte de sua obra e de alguns comentadores, já um descarte faz-se necessário: para Fernando Pessoa não há desafio, pois não há projeto. Os heterônimos não são projetados pelo ortônimo, o chamado “Fernando Pessoa, ele mesmo”. Leyla Perrone-Moisés afirma, categórica: “é preciso dizer, de uma vez por todas, que Fernando Pessoa “ele mesmo” não existiu. Que o lugar designado por esse nome é um lugar desertado, que esse nome flutua na inter-dicção e margeia o discurso por ele assinado. É preciso render-se à evidência de sua perfeita invisibilidade, devido à sua perfeita divisibilidade. É preciso confessar que Pessoa é um poeta fictício, tão irreal quanto os heterônimos que inventou.”
Criação, todos. Caeiro, Campos, Reis e Pessoa. Um não precede os outros, apesar de um Fernando Antônio Nogueira Pessoa ter nascido em 13 de junho de 1888 e morrido em 30 de novembro de 1935. Em famosa carta a Adolfo Casais Monteiro, o poeta nos narra parte do fenômeno heteronímico: “Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida na maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou ou a quem suponho que sou. Dizia-o imediatamente, espontaneamente, como sendo de um certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho saudades deles.”
Sensata, a analista. Se não saem da imaginação, não foram projetados, arquitetados a priori. Discursivamente constituídos, em sentidos muito posteriores à existência do poeta, em seu nascedouro foram, antes de tudo, linguagem em movimento, fragmentos lingüísticos do real, representações simbólicas do mundo. Sua vida, propriamente, pois “ouve, sente e vê” as figuras que sabe serem apenas formas de representação.
As afirmações do poeta nos impedem algumas interpretações apressadas. Não se trataria de dupla personalidade? Provavelmente, não. Em estado de dupla (ou múltipla) personalidade, um ser não tem consciência do outro. No caso de Pessoa, todos têm consciência de todos, todos falam de todos (vide sua obra em prosa). Ao falar do surgimento dos heterônimos, Fernando Pessoa usa expressões como “nasceu em mim”, “me vi falando”, “foi o aparecimento de alguém em mim” etc. Desafio para nós: não há projeto, mas há consciência.
Quem sabe loucura de uma vida insana? Jacinto do Prado Coelho sintetiza: “Seus poemas são o que houve nele de vida. Em tudo mais não houve incidentes, nem há história.” Não há nada de fascinante na biografia de Fernando Pessoa. Família grande, irmãos, perda do pai, figura de um padrasto, juventude vivida na África do Sul (o que lhe dá uma forte formação em língua e literatura inglesas), maturidade em Portugal, muito álcool, várias publicações em revistas de vanguarda, vida profissional ligada ao jornalismo e à tradução, vida amorosa quase inexistente e escrita. Muita, muita, muita escrita: “Sua imensa produção escrita (a inesgotável arca, em contraste com sua pequena ambição de publicar) atesta um trabalho incessante e quase insano.”
Deixando de lado as patologias (talvez alguns traços de histeria, esquizofrenia, neurastenia, enfim...), talvez possamos pensar em um traço não de personalidade, mas de modernidade: Fernando Pessoa é um autor consciente de que o “eu” (e o “outro”) é um fingimento psíquico que se dá pela e na linguagem. Ainda segundo Leyla Perrone- Moisés, “os heterônimos não são fruto de uma rica imaginação tão-somente artística, ou a prova da versatilidade do Poeta, mas os cobrimentos de uma falha. Falta de ser e excesso de desejo (grifo meu) fazem implodir o sujeito que, ao tentar reunir diversos eus postiços num conjunto, precipita-se, pelo contrário, na experiência da dispersão sem volta. Pessoa não se multiplica para fora, mas para dentro(...).” E, segundo a autora, nesse caminho obsessivo, que muda de formas mas está sempre no mesmo lugar, a grande questão é “quem sou? E a resposta: Não sou nada.”
Eco dos primeiros modernos (Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e tantos outros), a obra pessoana, dentro de uma ótica capitalista, insere-se da “falta de utilidade”, decorativa ou sob “forma de lição”, o que faz do poeta “um ser desqualificado” socialmente. “Podemos ver em Pessoa um momento muito significativo, estética e socialmente, de uma linha que vem desde o Romantismo, e ao longo da qual o poeta se sente (se coloca) primeiro como Gênio, em seguida como maldito, depois como resistente heróico, e finalmente como desqualificado. Poeta maior do início de nosso século, Pessoa se auto-situa, em sua existência social, em seus poemas e páginas íntimas, como um gênio desqualificado.”
Eis nosso grande desafio: ver-se diante de obra tão multifacetada que, no entanto, não sai do lugar. Não seria essa também nossa condição de vida no mundo moderno? Desejamos muito, vivemos pouco; vemos muito, não entendemos quase nada. Mas talvez nós, assim como ele, pulsemos ainda por alguma energia, cada qual canalizando-a à sua maneira: “tematicamente, a poesia de Pessoa nega: nega a verdade, a unidade, a finalidade, a própria energia como esforço inútil. Mas em sua escrita teimosa, ela afirma um tipo de ação, a poesia, num mundo que não lhe quer dar mais nenhum lugar. É escrevendo que Pessoa qualifica o desqualificado: ‘Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei / A caligrafia rápida destes versos, / Pórtico partido para o Impossível’.”

Débora de Angelo